quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Um mundo multicultural?

Será que ainda dá para acreditar (e alguma vez deu?) no discurso multiculturalista (aquela bela, admirável, mas impalpável ideia anti-eurocêntrica de valorização das culturas e dos povos periféricos)? A foto de Boris Horvait/AFP, publicada no site da Folha de S. Paulo (26/08/10), reitera a resposta: não!



FOLHA: "Ciganos romenos embarcam em avião no aeroporto Charles de Gaulle, em Paris; governo da França vai deportar 283 famílias da Romênia nesta quinta."

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Sérgio Sant’Anna, o camaleão da ficção

foto André Arruda

Na falta de textos novos, publico aqui um breve perfil do escritor Sérgio Sant'Anna feito nos tempos de faculdade para o professor e mestre do jornalismo Arthur Dapieve. Minha admiração por Sant'Anna veio pouco antes da entrevista feita com o escritor em outubro de 2005, quando li seu livro O Vôo da Madrugada. Depois disso, lendo seus outros livros, constatei que Sérgio Sant'Anna é um dos maiores escritores da literatura brasileira contemporânea e, na minha opinião, o melhor contista. Segue:

Sant’Anna, o camaleão da ficção                         
Com quase 40 anos de carreira, o escritor não se cansa de reinventar sua literatura

Tal como o repórter fora tomado de assalto pelo e-mail no qual Sérgio Sant’Anna marcava a entrevista para aquele mesmo dia, numa segunda-feira de outubro, ele também surpreendera o escritor preparando uma torrada e uma bebida para fazer o lanche no início da noite, ao chegar 15 minutos antes do horário marcado, em seu apartamento, nas Laranjeiras. Na verdade, Sant’Anna, que havia marcado a entrevista para as oito da noite, antecipou o encontro para as 19h porque pretendia assistir à partida de futebol entre Internacional e Paysandu, apesar de torcer pelo Fluminense.
           
Agora, enquanto toma seu lanche, percorre com o olhar a sala, que abriga poucos objetos, além de uma mesa com cadeiras, sofá, poltrona, uma televisão com um decodificador de TV por assinatura e alguns discos de vinil guardados num móvel, e parece ouvir com curiosidade e atenção as perguntas que lhe são dirigidas. Sant’Anna, entretanto, tem começado a se incomodar com os convites para palestras e entrevistas.

A razão para repensar as aparições públicas se explica, em parte, por um recente seminário sobre literatura latino-americana, onde o escritor lançou mão das histórias do novo livro que pretende escrever para salvar sua palestra, depois de um mediador ter tomado quase todo o tempo com teorias que espantaram boa parte do público. Agora, no entanto, Sant’Anna se esquiva de dar mais informações sobre os contos e lamenta tê-lo feito naquele momento, com receio de perder o entusiasmo para escrevê-los, assim como seu personagem Godard, no conto “As cartas não mentem jamais”, do livro “O Monstro”, que narra seus projetos de filmes para uma psicanalista e acaba desistindo de realizá-los.  A decisão se relaciona também ao resultado da exposição excessiva:

– Quando você começa a aparecer em programas de TV ou a divulgar muito a sua obra - seus livros ou as adaptações feitas a partir deles - as pessoas, a crítica, já começam a falar mal. Agora estão falando mal até do Rubem Fonseca, que nem aparece em lugar nenhum. Mas o Rubem tem compulsão mesmo por estar sempre escrevendo. Então, os livros dele são bem lidos e divulgados, adaptados, como nessa série do Mandrake – analisa o escritor, que também teve recentemente o romance “Um Crime Delicado” filmado pelo diretor Beto Brant.

Aliás, ele define o personagem do filme adaptado de seu livro homônimo como um pintor “realista demais” enquanto que no seu romance ele é “ultranaturalista, vigarista, realista, duchampniano, entre outras coisas”. Essa tendência em misturar estilos e gêneros é uma constante em sua carreira desde a entrada na literatura com o livro de contos “O sobrevivente”, em 1969. Sant’Anna admite que tenta não se repetir e está sempre tentando inovar na forma e no conteúdo. Para a professora de Literatura Brasileira da PUC-Rio Giovanna Dealtry, há também outros destaques na sua ficção:

– Além de não cair na armadilha da repetição, ele procura investigar a condição humana de forma profunda e pelo viés da fina ironia, ao abordar temas do cotidiano, como um flerte banal, uma transa ou até a morte – afirma Giovanna, que vê ainda no autor a figura de um transgressor da forma – Ao tematizar e questionar o próprio ato da escrita, ele deixa evidente que não há mais um local seguro e diferenciado para o narrador. Outro ponto interessante é o diálogo com as outras formas de arte, como, por exemplo, o teatro e as artes plásticas.

A paixão pelas artes visuais tem um motivo similar à literatura de Sant’Anna, elas “vêm sempre na frente das transformações artísticas e, por isso, trazem a novidade”. Quanto ao teatro, costuma sair de casa somente para assistir a peças que tenham propostas de ruptura, como “Dança da Morte”, do belga Jan Fabre, que assistiu na última edição do festival “Riocenacontemporânea”, no início de outubro. Novela ele não vê: “não é preconceito, é conceito: as novelas não andam”. Na literatura, o último livro que andou lendo – “História do cerco de Lisboa”, do português José Saramago – achou “arrastado demais”.

Apesar de uma suposta radicalidade com as artes, o escritor não se declara um anarquista ou iconoclasta, como ele mesmo definiu parte da chamada Geração 90, na qual se inclui o filho André Sant’Anna, hoje, morando em São Paulo. Segundo André, seus gostos artísticos se relacionam aos do pai, além da influência literária:

– Quanto à minha literatura, diretamente, antes, eu até achava que a influência era pouca, mas, outro dia, percebi, por exemplo, o quanto um conto dele, "O sexo não é um coisa tão natural", teve influência no meu livro "Sexo", além de uma ou outra coisa que descubro nos meus textos – afirma André, que conviveu com Sant’Anna por dez anos e teve a oportunidade de ser o primeiro leitor de muitos de seus escritos.

Aos 64 anos, dono de uma “ambigüidade própria”, Sérgio Sant’Anna é chamado de pós-moderno por alguns críticos. Com a resposta, o autor:

– Pós-moderno? Eu não sei o que querem dizer com isso!

terça-feira, 15 de junho de 2010

Viajo porque preciso, volto porque te amo


Uma das imagens mais belas e significativas do cinema contemporâneo é o plano final de Eu não quero dormir sozinho (2006), do diretor malaio Tsai Ming-Liang, em que um colchão flutua lentamente sobre a água e vai entrando aos poucos em quadro para encerrar o filme. A imagem acima é um fotograma do novo filme de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, diretores dos mais belos filmes do cinema brasileiro contemporâneo (Madame Satã, Céu de Suely e Cinema, Aspirinas e Urubus). A narração sonora que cobre a imagem do colchão em Viajo porque preciso, volto porque te amo nos diz que ele seca à luz do sol depois de uma noite de amor de muitos fluidos. É forte a referência, pelo menos ao título do filme de Tsai Ming-Liang. José Renato, geólogo, 35 anos, correndo as estradas a trabalho, não quer dormir sozinho. Nos filmes de Tsai Ming-Liang e em Eu não quero dormir sozinho, a água é sempre fator preponderante e de incômodo nas relações humanas. No filme de Gomes e Aïnouz, o personagem quer inundar as cidades percorridas com a represa que será instalada em breve.  Aqui, a secura desoladora do sertão incomoda e angustia.

Viajo porque preciso, volto porque te amo não é apenas um road-movie. Ele é também um filme de família frustrado. As imagens sem foco, amadoras, de um filme de família estão lá. O ponto de vista de José Renato – narração de primeira pessoa radicalizada porque nunca veremos o personagem em campo – , no entanto, só alcança outras famílias, outros casais, fazendo um inventário humano das cidades, sem alcançar a si próprio. Não consegue estabelecer seus vínculos matrimoniais com a mulher que ficou no passado e que lhe deu um “pé na bunda”.

Por fim, cabe ressaltar o trânsito constante entre documentário e ficção (nada novo nisso) num dos inúmeros exemplos de como esse diálogo se estabelece. As imagens que vemos em Viajo porque preciso, volto porque te amo foram produzidas anos antes, sem a intenção de uma ficção. Eram imagens documentais, solras, sem uma narrativa elaborada. A ideia do filme de ficção através da inserção de uma voz narradora deu sentido àquelas imagens. A câmera subjetiva revela muito de fictício quando constrói um personagem em trânsito pelo sertão. Por outro lado, há muito de um tipo tradicional de imagem documental nas tomadas fixas que miram as gentes do nordeste, sustentando o plano até causar o riso ou a inibição do ator social.

sábado, 29 de maio de 2010

Dennis Hopper, "Born to be Wild"


Dennis Hopper, ator e diretor americano, eternamente rebelde (1936 - 2010)

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Esboço de uma leitura de Roberto Bolaño (1)





Primeiro passo para conhecer a obra literária do escritor chileno Roberto Bolaño, falecido em 2003, a leitura do romance Estrela Distante (1996) foi muito prazerosa nesses últimos dias. Bolaño, que parece estar sendo muito estudado nos programas de pós-graduação em Literatura dos Estados Unidos, atualiza em Estrela Distante suas memórias dos últimos dias do governo de Salvador Allende e o posterior golpe militar de Augusto Pinochet. Nesse contexto, estão inseridos escritores que fazem parte de uma oficina literária de poesia. O foco de Bolaño concentra-se na figura do poeta Alberto Ruiz-Tagle, recém-chegado à oficina, motivo de curiosidade dos demais. Segundo o narrador, Ruiz-Tagle tem todas as características que os demais, militantes da esquerda chilena, não têm. Ruiz-Tagle veste-se bem, fala em tom baixo e é por demais rico e sofisticado para um poeta (não exatamente nessa descrição esquemática que faço aqui, agora). Mais adiante, saberemos que Ruiz-Tagle é, na verdade, Carlos Wieder, tenente aviador das forças armadas do Chile.

Três pontos chamam atenção em Estrela Distante: 1) Bolaño não tira de Wieder a qualidade de poeta, mesmo depois de descoberta a farsa do tenente. Wieder é poeta reconhecido e admirado em seu país. Seus poemas-enigma são escritos pela fumaça nos céus da cidade de Concepción. Em alguns momentos, o próprio narrador perde seu inseparável senso crítico e deixa entrever uma ponta de fascinação/perplexidade diante das manobras radicais de Wieder nos céus do Chile. De uma penitenciária, o narrador passa sete páginas contemplando junto com os outros presos os voos kamikazes de Wieder e seus poemas que anunciam o desejo de morte. Seus atos performáticos e sua escrita são de vanguarda. Bolaño, portanto, nos diz que que arte vanguardista e governo violento coexistem no mesmo espaço e são produzidos pelas mesmas pessoas. A elite intelectual que escreve poesias e dialoga com a mais alta vanguarda européia é a mesma que pode trucidar os opositores do regime político. Arte não exclui atrocidade, tampouco é passaporte para o céu. O mesmo pode ser dito da crítica literária, que tece mil elogios ao poeta Wieder.

2) Bolaño desautoriza a hierarquia entre ficção e relato testemunhal. Avisa, de início, que está retomando a história do tenente Ramírez Hoffman, o qual Bolaño havia relatado em seu livro anterior, La literatura nazi en América (1996, ainda sem tradução no Brasil). Dá a entender que o autor está partindo de um relato real para o ficcional. No entanto, La literatura nazi en América foi concebido como uma enciclopédia imaginária de escritores americanos que de algum modo colaboraram com ditaduras militares. Para potencializar ainda mais a confusão, Bolaño mistura os registros de real e ficção e polemiza ao citar autores reais que tiveram algum tipo de ligação com governos autoritários. Por outro lado, sua narrativa é vacilante. Deixa para o leitor o julgamento da veracidade do que é narrado. Este narrador, quando não imagina situações – e esclarece para o leitor que está conjecturando – que não presenciou, está relatando o que ouviu de outro. Seu papel como ator da história é praticamente nulo, principalmente na segunda parte do romance, quando viaja para Europa e passa a narrar a trajetória de Carlos Wieder através dos telegramas que recebe de seu amigo Bibiano O’Ryan. O narrador só torna a se confrontar com a História e com o passado quando recebe a tarefa de encontrar Wieder. 

3) O duplo. É preciso fôlego para estudar e se debruçar sobre o duplo, o Doppelgänger. O duplo é um assunto que atravessa a história da literatura, a psicanálise e o cinema. Vide Borges e o cinema expressionista alemão, por exemplo. O duplo dá a Bolaño a possibilidade de trabalhar com a promiscuidade da arte. A contradição - e o que constitui o duplo - está em Ruiz-Tagler e Wieder serem tão diferentes um do outro e, ao fim, serem a mesma pessoa, uma síntese. Do mesmo modo, o lugar da arte como porto seguro (una, sagrada, defensora de boas causas) é desestabilizado para dar lugar à sua face anárquica, múltipla e inapreensível. Por outro lado, Bolaño-autor pouco se contém como narrador do romance. A todo momento, sua projeção, se não chega a encontrar no espelho um Wieder, ela é muitas vezes o amigo Bibiano. Bibiano é testemunha de toda a trama, assim como também é autor de um livro sobre escritores fascistas na América. Bolaño é, pois, o narrador e Bibiano, desloca e distribui seus interesses e seus temas aos dois personagens, recompondo o duplo. Nenhuma novidade em termos de linguagem. Interessante é perceber que o jogo se estabelece entre dois duplos e não um. A síntese Ruiz-Tagler/Wieder e a síntese Narrador/Bibiano e as oposições entre os pares Ruiz-Tagler/Wiedler e Narrador/Bibiano.   

P.S.: A propósito da polêmica em torno de La literatura nazi en América, no nosso âmbito geográfico, a guilhotina de Bolaño cai sobre Rubem Fonseca. O boato relaciona a saída de Fonseca da Companhia das Letras ao fato de a editora ter comprado recentemente os direitos de publicação de Bolaño, no Brasil.
Sobre a polêmica Roberto Bolaño x Rubem Fonseca, aqui e aqui.
La literatura nazi en América para download.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Onan ou "Ostran"?


A nova polêmica da crítica cultural é o artigo "A crítica como papel de bala", de Flora Süssekind, publicado no último sábado (24 de abril) no suplemento Prosa&Verso, do jornal O Globo (também disponível no blog prosa). Lá, Flora utiliza como ganchos a morte do crítico literário Wilson Martins, em 30 de janeiro, e os obituários escritos por Alcir Pécora e Miguel Sanchez Neto, respectivamente publicados na Folha de S. Paulo e no jornal curitibano Rascunho. Este último, segundo Süssekind, de "orientação orgulhosamente conservadora". Acrescento: e o outro, de orientação esquizofrenicamente conservadora.

Flora, pesquisadora da Casa de Rui Barbosa e professora de teoria do teatro na UNIRIO, é como o famoso Django, "não perdoa, mata":  Talvez seja necessário, na discussão de um espaço ainda crítico para a crítica, matar mais uma vez Wilson Martins, afirma. Na verdade, o ataque da teórica tem como alvo o conservadorismo da atual crítica literária e o choro lamentoso para um crítico igualmente conservador. Quem andou por aí chamando Flora de marxista, errou feio. Em "Literatura e vida literária: polêmicas, diários e retratos", reeditado recentemente pela UFMG, Flora critica também a crítica de esquerda, propondo maior liberdade à criação literária. Lá, ela demonstra como a prosa ligada excessivamente aos relatos de experiência de tortura envelheceram rápido, enquanto um Sérgio Sant'Anna ou um João Gilberto Noll amadureceram bem, falando das mesmas torturas e da mesma ditadura numa chave irônica e surreal. 

A repercussão do recente artigo deve continuar por mais algumas semanas. Foram muitos os críticos que comentaram, bem ou mal, em seus blogs o tom elevado de Süssekind. Luís Antônio Giron, da revista Época, parecia tão abalado que trocou as bolas ao falar de Wilson Martins: Morreu na solidão, e desprezado, como acontece com tudo que é intelectual brasileiro. Justamente aqueles que tinham de estar em contato com os jovens, com os professores, com o público, são aqueles condenados ao onanismo, afirmou Giron, no site da revista. Como diria o Ancelmo Góis, na minha terra, onanismo é outra coisa.... Por favor, Houaiss! 

ONANISMO
1 interrupção do coito antes da ejaculação, 
2    Derivação: por extensão de sentido. automasturbação manual masculina; quiromania 

Etimologia
antr. 
Onan + -ismo; Onan era um personagem bíblico, um hebreu que, por motivos especiais, não queria ter filhos, e, por isso, praticava o coito interrompido com sua mulher, espalhando seu sêmen pelo chão; a datação é para a acp. 'automasturbação'

Seria OSTRACISMO? 
1    Rubrica: história.      na antiga Grécia, desterro político, que não importava ignomínia, desonra nem confiscação de bens, a que se condenava, por período de dez anos, o cidadão ateniense que, por sua grande influência nos negócios públicos e por seu distinto merecimento ou serviços, se receava que quisesse atentar contra a liberdade pública 2    Derivação: por extensão de sentido.      exclusão de cargo público ou político 3    Derivação: sentido figurado.      ato ou efeito de repelir; afastamento, repulsa Ex.: por sua bisbilhotice a sociedade condenou-o ao o. 



Soft Opening, meu bem!


Há mais ou menos três semanas, abri o jornal e vi a programação do Theatro Municipal. Um asterisco, no entanto, mostrava lá no rodapé da página, em letras miúdas, como naquelas taxas extras das propagandas de lojas de carro, a inscrição 'soft opening'. Boa! Excelente eufemismo para se desculpar por uma obra que atrasou meses para ser concluída. O Municipal deveria ter sido reaberto em seu aniversário de 100 anos, em junho de 2009. No popular, significa que o teatro vai ser reinaugurado assim assim... bem meia-boca.

Na semana passada, eu, com muita febre, saí de casa sem senso de humor para ir à farmácia. Uma pena! Perdi a oportunidade de fazer a piada diretamente com a responsável. Passando pela Cinelândia, vi Carla Camurati,  presidente da Fundação Theatro Municipal, diante do teatro, convocando os operários a fazerem uma foto com ela nas escadarias. Tiraram os tapumes para fazer as fotos. No dia seguinte, estavam lá, novamente, os tapumes. Tudo bem chic, bem 'soft opening'. "Gente coisa é outra fina".

* Foto de Mônica Imbuzeiro / O Globo